Tentativa de Bolsonaro de proteger a difusão de ódio e desinformação pode quebrar a internet
Barao de Itararé
Thursday, June 10, 2021
Foto: Barao de Itararé

Coalizão Direitos na Rede, coletivo que reúne 45 entidades da sociedade civil e organizações acadêmicas que trabalham em defesa dos direitos digitais, analisou a minuta de novo decreto presidencial que tem por objetivo regular o Marco Civil da Internet (Lei No 12.965/2014) e faz um alerta à sociedade brasileira sobre o enorme risco que ela apresenta. 

Em uma iniciativa ilegal e inconstitucional, que pode permitir que desinformação e discurso de ódio se mantenham na rede, Bolsonaro poderá quebrar a internet como a conhecemos. O debate sobre a regulação das grandes plataformas está na ordem do dia e o Brasil deve avançar nesta discussão. Mas a solução perigosa apresentada pelo governo pode prejudicar usuários, órgãos públicos e empresas que interagem e ofertam serviços online e causar um impacto irreversível para o funcionamento da rede no país. 

Tornada pública por veículos de imprensa, a minuta de decreto apresenta uma nova regulamentação do Marco Civil da Internet, que institui direitos dos usuários e serviços na Internet. No caso dos chamados provedores de aplicação (plataformas como Facebook, Google e Twitter e também serviços diversos ofertados online), o Art. 19 da lei afirma que aqueles que operam com base em conteúdos produzidos por terceiros somente podem ser responsabilizados juridicamente por tais mensagens se, ao receberem uma ordem judicial de remoção, não a cumprirem. Além disso, o modelo instituído pelo MCI permite que intermediários tenham suas próprias políticas de moderação (como regras do que pode ou não ser publicado), ao mesmo tempo em que estabelece que estes devem seguir o que o Judiciário determinar posteriormente. 

Porém, a minuta de decreto elaborada pela Secretaria de Cultura inverte essa lógica ao obrigar que qualquer exclusão, limitação de publicações ou suspensão de contas só possa ocorrer por meio de decisão judicial, com algumas exceções. A proposta teria um efeito devastador sobre a Internet. Isso porque ela não regularia apenas as grandes plataformas de redes sociais, mas qualquer tipo de serviço prestado na rede. Com este decreto publicado, um site não poderia, por exemplo, retirar comentários abusivos de leitores se não recebesse uma ordem judicial para tal. Aplicativos de mobilidade não poderiam excluir contas de ofertantes de serviço que tivessem faltas graves (como um assediador no Uber ou no AirBnB). Plataformas de conhecimento, como a Wikipédia, não poderiam editar verbetes com mentiras flagrantes. Ou seja, a decisão judicial prévia seria a regra geral para a moderação de conteúdo.

Mesmo considerando as redes sociais, o decreto tornaria tais espaços homogêneos, inóspitos e tóxicos. Tais empresas não poderiam mais realizar controle de spam ou de vendas de armas sem ordem judicial. Mais ainda, não poderiam aplicar medidas em contas destinadas unicamente a promover crimes, assédio ou bullying sem antes recorrer ao Judiciário. Em nome da “liberdade de expressão”, o governo estaria acabando com a possibilidade de brasileiras e brasileiros se sentirem seguros e ouvidos para se expressarem, criando uma internet sem diversidade de espaços. Uma internet que poderão imperar os mais violentos e aqueles que lotam as timelines com spam. Isso viola frontalmente a liberdade de expressão e o acesso à informação de todas e todos.

A proposta de decreto traz algumas exceções, nas quais as plataformas poderiam agir sem autorização prévia de um juiz. A lista, entretanto, além de trabalhar com temas vagos, deixa de fora situações cuja resposta célere das redes sociais tem se mostrado relevante, como é o caso de conteúdos que incentivam ódio ou práticas de desinformação. A minuta também limita as possibilidades de suspensão e exclusão de contas, tema fundamental que deve ser debatido e objeto de regras democráticas, sob risco de atacar a liberdade de expressão e silenciar vozes dissidentes. 

Vale destacar que o Marco Civil da Internet não se dedicou a regular ou delimitar a aplicação de medidas de moderação de conteúdos na Internet, justamente para garantir o equilíbrio entre a liberdade de expressão dos usuários e o fomento ao desenvolvimento de um ambiente de inovação e atuação de provedores de aplicações. Nesse sentido, toda e qualquer tentativa de modificação no regime de responsabilidade de intermediários presente no artigo 19 da lei deve necessariamente ser feita por outro texto de lei e não via decreto presidencial, como se propõe1

Sabemos que as regras de moderação de conteúdo adotadas pelas grandes plataformas  necessitam de melhorias e garantias (como transparência e devido processo) em acordo com a liberdade de expressão. Porém, o decreto em debate, ao criar novos parâmetros e lógicas para a atuação das plataformas, subverte o terreno no qual essas discussões estão ocorrendo no momento, ameaçando o atual status do debate público sobre o tema.

Distorção do conceito de direito autoral

O decreto, se editado, também vai impactar fortemente a produção e difusão de conteúdos online ao impor limitações e obrigações para publicações protegidas por direitos autorais. A norma delegaria à Secretaria de Direito Autoral e Propriedade Intelectual do Ministério do Turismo um poder de fiscalização que a tornaria, na prática, um mega controlador da Internet no Brasil. Pelo texto, a Secretaria teria o poder de apurar as infrações a direitos autorais cometidas pelas plataformas de Internet, em uma argumentação que insinua que tudo que é postado na rede é uma obra protegida por direito autoral. Neste raciocínio, as plataformas estariam obrigadas a veicular aquilo que seus usuários produzem. 

Extrapolando o sistema de proteção a direitos autorais no Brasil, o governo tenta utilizá-lo como blindagem em face da ação das empresas de Internet em relação a conteúdos de usuários, criando regras problemáticas. Como se sabe, nem tudo que é produzido é original o suficiente para ser protegido por direito autoral. Mesmo se tratando de conteúdos protegidos, o direito autoral não cria uma obrigação automática para que aquele que tem licença para publicar seja obrigado a veicular algo. 

A centralidade do debate multissetorial sobre a regulação da Internet

A influência das plataformas em nossas vidas e nas democracias contemporâneas motiva debates em todo o mundo sobre regras e possíveis limites que tais empresas deveriam respeitar. Nações democráticas vêm lidando com o tema com debates amplos e participativos. Uma regulação do debate online que equilibre a liberdade de expressão e o direito à informação correta não pode deixar a moderação apenas a cargo das plataformas digitais, que já demonstraram sua incapacidade de lidar com o problema em sua complexidade, nem ser construída de forma autoritária e atropelada por um governo. O caminho que nações democráticas têm percorrido é exatamente o de regulações públicas, construídas multissetorialmente, que assegurem a liberdade de expressão e também permitam o combate a abusos praticados no seu exercício. Trata-se de regulações baseadas em sistemas complementares, com atuação tanto de entes públicos como de plataformas e aplicativos. 

Por isso, é necessário que qualquer nova regra neste sentido seja objeto de um amplo debate público. Aqui cabe lembrar a exitosa experiência brasileira, que deu origem ao próprio Marco Civil da Internet, reconhecida internacionalmente e baseada no debate multissetorial conduzido pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Aliás, o próprio texto do MCI estabelece que diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios acerca do desenvolvimento da Internet no Brasil devem ser elaboradas com participação do CGI.br (Art.24, II), justamente em reconhecimento ao fato de que processos que contam com o engajamento de diferentes setores da sociedade são os que podem melhor produzir normas e leis democráticas para a regulação da Internet. 

Ao Parlamento também deve ser garantido um espaço nesta discussão.  E isso já está ocorrendo. No ano passado, o Senado aprovou o Projeto de Lei 2.630/20, que visa exatamente trazer regras sobre conteúdos em circulação e comportamentos de contas em grandes redes sociais. Apesar do texto aprovado e remetido à Câmara ainda ter problemas e carecer de ajustes, ele reflete de forma muito mais consistente que o decreto ora em análise o estado do debate na sociedade brasileira. Além disso, foi objeto de amplo debate público por diversos segmentos, o que não ocorreu com a minuta de decreto do Executivo. 

Vícios formais e inconstitucionalidades do texto

O decreto traz problemas graves tanto no mérito das regras propostas quanto no método como pretende disciplinar o tema dos conteúdos na Internet. Neste sentido, ao pretender promover uma alteração legislativa por meio de Decreto Presidencial, ferramenta regulatória de categoria inferior, a proposta é flagrantemente inconstitucional e ilegal. A tentativa de promoção de inovações legislativas por meio da edição de um texto legal de categoria inferior – e não a simples regulamentação de matérias presentes no texto do Marco Civil da Internet no livre exercício das competências atribuídas ao Presidente da República por meio do art. 84, IV, da Constituição Federal – representa uma atuação ilegal do Governo Federal e um desrespeito à vontade do legislador.  

Apesar de a justificativa do decreto alegar regulamentar “a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações” enquanto “condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet“, conforme delimitado no art. 8º do MCI, o que decorre do decreto proposto é uma alteração do modelo de responsabilidade de intermediários estabelecido pelo artigo 19 da lei, sem qualquer consulta a órgãos competentes, como o Comitê Gestor da Internet no Brasil, como determina a lei, ou à sociedade. 

Não pode um decreto regulamentar se sobrepor ao disposto na lei que o ampara e o justifica, tampouco ampliar o alcance normativo, já que, como dito anteriormente, dentro do sistema hierárquico de normas do ordenamento jurídico brasileiro, o decreto está abaixo das normas infraconstitucionais. Portanto, deve observar suas limitações, sob pena de ser considerado inválido ou inconstitucional2. No caso em questão, o texto da minuta extrapola as matérias tratadas no Marco Civil e inova na regulação do uso da Internet no Brasil, como já explicitado anteriormente.

Vale destacar, por fim, que a possibilidade de regulamentação posterior deve ser prevista pelo próprio texto legal, estando o Presidente da República limitado a regulamentar direitos e deveres já estabelecidos em lei. O que ocorre aqui, entretanto, é a tentativa de regulamentação de condutas na Internet com base no art. 8º do Marco Civil, que em nenhum momento requer ou define possibilidade de edição de decreto regulamentar. Nesse sentido, se editado, o decreto nasce com vício de inconstitucionalidade, sendo, portanto, inválido.

Conclusões 

Ante o exposto e a importância do tema para a garantia do funcionamento da Internet como conhecemos e para a preservação de medidas de controle da disseminação de desinformação, discurso de ódio e de promoção de um ambiente online saudável, as entidades da Coalizão Direitos na Rede solicitam que a minuta de decreto em questão não seja promulgada, sob o risco de alterar completamente o modelo equilibrado de responsabilidade de intermediários alcançado com a sanção da lei 12.965/2014, sem qualquer espaço de contribuição da sociedade, conforme disposto na lei. 

Reiteramos que esse debate deve ser objeto de discussão ampla, participativa, democrática e multissetorial, no âmbito do Comitê Gestor da Internet no Brasil e do Congresso Nacional. Colocamo-nos, assim, à disposição do poder público para contribuir com a discussão sobre a regulação das plataformas e a moderação de conteúdos pelas redes sociais, acreditando que, ao seguir a experiência histórica e participativa do processo que resultou na aprovação do Marco Civil da Internet, nosso país poderá dar mais uma relevante contribuição aos desafios colocados para o funcionamento da rede em todo o mundo. 

Brasília, 08 de Junho de 2021.