A poucos dias das eleições gerais na Bolívia, o Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA) entrevistou o ministro de Relações Exteriores do Estado Plurinacional da Bolívia, Diego Pary Rodríguez. O diálogo ocorreu nos estúdios do Sistema Nacional de Rádios de Povos Originários, na Bolívia, em conexão com Quito, no Equador, e Córdoba, na Argentina. A entrevista foi transmitida por toda a América Latina através da Associação Latino-Americana de Educação e Comunicação Popular (Aler).
Participaram da entrevista o coletivo ComunicaSul (Brasil), o Sistema Nacional de Rádios dos Povos Originários (Bolívia), a Agência Latino-Americana de Informação (Alai), a Associação Latino-Americana de Educação e Comunicação Popular (Aler) e a agência internacional de notícias Pressenza.
Política exterior e integração regional
A conversa teve início com perguntas relacionadas aos avanços mais destacados do país na política externa sob o governo de Evo Morales. O chanceler avalia que “a grande contribuição da Bolívia neste campo é levar a cabo uma política externa independente, digna, soberana e com identidade própria”. Segundo ele, a Bolívia deixou de ser um mero acompanhante das posições hegemônicas de outros países no mundo, passando a ser mais propositiva e participativa, tomando parte em importantes decisões nos diversos fóruns multilaterais dos quais participa.
A diplomacia boliviana é capaz de dialogar e trabalhar não apenas com quem compartilha as nossas posições ideológicas, mas também com os que divergem, afirma Rodríguez. Por isso, a Bolívia tem se consolidado como uma mediação importante nos processos de integração sul-americana e latino-americana, devido a sua capacidade de articular as bases de interesses comuns entre os povos.
Em relação ao futuro da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e as possibilidades de a Bolívia assumir e passar a sediar a Secretaria-Geral da entidade, o diplomata disse que é certo que a Unasul passa por dificuldades neste momento, devido a decisões de alguns países em não participar. “Por outro lado, sabemos que os organismos internacionais nunca morrem”, afirma.
O chanceler afirma que a Unasul está vigente e, tão cedo ocorrer uma mudança na correlação de forças da região e os países membros decidirem por retomar o funcionamento do órgão, a Unasul voltará a articular todos os Estados do continente. “É um dos organismos que foram criados justamente para integrar os nossos povos e, neste marco, seguiremos apoiando e promovendo a ideia de que os povos da região devem apostar na integração e na união”.
Sobre o tema da Secretaria-Geral, Rodríguez opina que é um assunto a ser discutido, já que a sua sede original, em Quito, já não tem mais condições de cumprir esse papel. Até o momento presente, o único Estado membro da Unasul a denunciar o tratado consultivo do órgão foi a Colômbia. Apesar de que alguns países não estejam participando e a Secretaria-Geral não esteja funcionando, a Unasul segue vigente, reforça o ministro boliviano.
Sobre possíveis problemas de cooperação com um Brasil governado por uma direita ultraconservadora e ultraliberal, Diego Pary Rodríguez pondera que as relações entre os dos países transcendem as diferenças ideológicas, preservando as estreitas relações entre Bolívia e Brasil. “Eles têm a visão deles e nós, a nossa. Apesar das divergências, temos tido sucesso em coordenar os temas de interesse comum”.
Sobre os efeitos positivos para a integração que deve gerar a eleição do México para exercer a presidência pro-tempore da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) em 2020, além de um iminente triunfo de Alberto Fernandez na Argentina, Pary Rodríguez manifestou que o México tem um papel de liderança muito importante na região e isso pode permitir convocar alguns países que tenham observações a serem feitas sobre o funcionamento da Celac. “Esperamos, em janeiro, que se concretize a próxima cúpula da Celac, a fim de que a Bolívia passe o bastão para o México”, conclui o ministro.
Amazônia e crise climática
Diante da recente crise de incêndios na Amazônia, que também afetaram a Bolívia, o chanceler foi questionado sobre as medidas para enfrentar a dramática situação tanto da perspectiva nacional quanto regional. De acordo com ele, o problema tem sido amenizado, porém, o acordo de Paris não foi implementado, os compromissos estão sendo adiados e há países que estão se retirando do acordo internacional, afetando a sua vigência. A Bolívia realizou fóruns internacionais e levou o tema à discussão na Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA) e a própria CELAC. “É destacável os esforços empreendidos pela França neste sentido”, pontua.
Ainda no âmbito regional, foram realizadas diferentes reuniões, como, por exemplo, a convocada por Peru e Colômbia na cidade fronteiriça de Leticia. Lá, os presidentes firmaram um acordo estabelecendo um plano de trabalho.
No âmbito nacional, Pary Rodríguez exaltou o esforço realizado pelo governo boliviano para combater os incêndios em Chiquitanía, contratando empresas especializadas e articulando a cooperação internacional. Além disso, foram disponibilizados significativos contingentes militares e de voluntários para apagar até os últimos focos de calor. Neste contexto do momento político vivido pela Bolívia, em período pré-eleitoral, tentaram de todas as formas utilizar o problema das queimadas para afetar o governo, sem levar em conta o grau de emergência e empenho levados em conta para combater as queimadas.
Agora, já está em plena implementação a fase pós-incêndio, que consiste no reflorestamento, na recuperação de aquíferos, nos cuidados com os animais da região - que inclusive têm sido atendidos por especialistas, de forma a devolver a vida para a região afetada.
“Acreditamos que a experiência da Bolívia é algo que pode ser facilmente aplicado em todo o âmbito regional. Será muito importante ter esse centro logístico contra desastres naturais na América da Sul e na Amazônia, para que quando ocorram emergências, os trabalhos sejam imediatamente iniciados”, salienta.
Eleições de 20 de outubro
Questionado sobre os riscos que o retorno da direita ao poder representam para a Bolívia, Diego Pary Rodríguez foi enfático: “Isso não vai acontecer, pois os movimentos sociais e o povo boliviano estão comprometidos com as grandes transformações que estão ocorrendo no país”.
Com base em um modelo político próprio, a Bolívia vem superando as bases de um Estado republicano colonial, consolidando a ideia de um Estado plurinacional, que incopora todos os setores da sociedade. “O povo boliviano impedirá o retorno da direita”, frisa.
Questionado por um dos interlocutores da entrevista sobre o cenário que a Bolívia enfrentaria em caso de a eleição ser decidida em segundo turno, com um hipotético triunfo do opositor Carlos Mesa (Comunidade Cidadã), o chanceler argumentou que a Bolívia tem vivido, na última década, um cenário de estabilidade política, econômica e social, algo raro na história do país. A hipótese de um triunfo da oposição certamente significaria um retorno aos tempos de instabilidade, como o período entre 2000 e 2005, quando a Bolívia teve cinco presidentes diferentes em apenas cinco anos. “Nenhum boliviano sente saudade deste passado”.
Além da instabilidade, Pary Rodrígue acrescenta que o “retorno ao passado” também significa retomar uma política de privatização dos recursos naturais e das empresas estratégicas, bem como o abandono de projetos estratégicos do Estado e do processo de industrialização.
Sobre autocrítica ou deficiências a serem corrigidas pelo governo no futuro, no caso de uma nova vitória de Evo Morales nas urnas, o chanceler, antes de mais nada, salienta que o “processo de câmbio” (processo de mudanças) iniciado há uma década promove transformações em uma história de 500 anos, o que é um desafio bastante complexo. A Bolívia é o país que mais cresce nos últimos seis anos na região, sendo que a tradição, antes de Evo, era de ocupar o penúltimo lugar neste ranking.
“O crescimento econômico é importante, mas não tem sentido se não muda a vida das pessoas”, afirma. Para sustentar sua afirmação, Rodríguez menciona a significativa redução da extrema pobreza, que nos últimos treze anos caiu 23%. “Nenhum país no mundo havia alcançado esta marca”, celebra. Mais de três milhões de bolivianos - cerca de um terço da população - que estava em situação de pobreza, hoje, formam parte de uma classe média, o que é uma mudança muito significativa. “São números que mostram a grande transformação que temos levado a cabo no país”, sentencia o ministro.
Em uma dimensão mais profunda do processo em curso no país, o chanceler recordou a Assembleia Constituinte de 2006, fundamental para o país mas que recebe muito pouca ou quase nenhuma atenção. “Antes, falava-se que existiam duas Bolívias: uma dos indígenas, dos camponeses e dos trabalhadores, e outra do setor empresarial e dos setores mais abastados do país. A Assembleia Constituinte de 2006 uniu o povo boliviano e fez com que cada cidadão e cidadã se sentissem identificados com o seu Estado. A partir disso, medidas chave foram tomadas, como a nacionalização dos recursos naturais e das empresas estratégicas, colocando esses setores a serviço do desenvolvimento do país e permitindo que a Bolívia seja, hoje, o líder regional em crescimento econômico.
“É claro”, completou o ministro, “que existem problemas a serem corrigidos e temas que não conseguimos dar respostas satisfatórias”. Na avaliação de Rodríguez, é neste contexto que se coloca o principal desafio para os próximos cinco anos: a industrialização. “Não podemos seguir vendendo apenas matéria-prima. Temos que transformá-la e obter valor agregado. Temos avançado no tema da industrialização do gás. A Bolívia é um dos países com a maior riqueza em lítio em todo o mundo, mas esse lítio tem que significar desenvolvimento para o nosso povo. E nos próximos cinco anos estamos seguros de que assim faremos”.